sábado, 7 de março de 2009

HOMENAGEM AO DIA INTERNACIONAL DA MULHER


Da Revista Forum

Rigoberta a mulher mais globalizada do mundo

Por Renato Rovai

Desde muito cedo, Rigoberta Menchú, que em 1992 tornou-se prêmio Nobel da Paz, começou a colher café em latifúndios. Nada diferente das outras famílias do povoado onde residia na Guatemala. Lá, como ainda em muitos cantos do mundo, no interior do país o trabalho das crianças era fundamental para complementar a renda.
Quando chegou à adolescência, passou a participar das atividades da Igreja Católica e começou a discutir e se engajar nas lutas sociais. Nesse período fez de tudo. E de tudo fizeram com ela e sua família, que foi perseguida pela ditadura. Ainda jovem perdeu o pai, a mãe e o irmão. Todos assassinados.
Rigoberta tem história semelhante à de muitos brasileiros, bolivianos, paraguaios, chineses, tibetanos, africanos. Por isso se considera um símbolo da globalização.
"Eu me pus a pensar durante toda essa noite e cheguei à conclusão de que sou a mulher mais globalizada do mundo. Sou um perfeito exemplo da globalização. Nasci em uma aldeia onde não havia luz, água potável ou escola. Era uma comunidade bem pequena, onde eu precisava descer com meus pais para colher café, algodão e voltar ao altiplano, além das tantas vezes em que vivi as mazelas do impaludismo. Sabem o que é impaludismo? A pessoa fica louca de tanta febre.
Também pensei sobre a fome, porque a fome é feroz, é terrível. Não a fome que temos talvez antes do almoço, que nos faz comer rápido. Quando se vive a fome ao longo da vida é diferente. Mas eu não vivi com fome, não totalmente a fome, pois em minha terra havia flores, ervas, raízes para comer. Quase como no Brasil, onde há lugares belos. Sou globalizada também por isso.
Fui também analfabeta, ainda que alguns não acreditem, por muitos anos de minha vida, porque não havia escola em minha aldeia. Também fui dirigente camponesa. Por isso sei que os camponeses não lutam só porque têm ou deixam de ter um pedaço de terra, mas para que essa terra floresça e dê até o final de sua força. Por isso sou globalizada; porque conheço algo da vida camponesa.
Também sou parte de uma cultura milenar; falo um idioma que vocês desconhecem. Um idioma que pouca gente fala. Hoje, na verdade, temos no planeta mais de 5 mil idiomas perfeitamente construídos de acordo com uma visão da vida e do ambiente.
Também fui empregada doméstica e digo que exercer essa função não é ruim. Foi algo que me ensinou muito. Passei a cozinhar, a amar a cozinha, além de ter aprendido a lavar o banheiro, os corredores, tudo. Isso não é mal, o trabalho doméstico nunca me tornou indigna. Ainda melhor: é o trabalho mais humilde e honrado que pode ocorrer na vida de uma mulher como eu. E por isso também sou global.
Se eu lhes dissesse que não sei quantas vezes estive exposta a uma violação sexual, não acreditariam. E essa é a vida de milhares de mulheres que não têm uma lei que as proteja, uma associação que as defenda; simplesmente as move a coragem de seguir adiante, sem perder o rumo.
Também fui sobrevivente de genocídio. Que palavra é essa? Há décadas, as Nações Unidas aprovaram a convenção internacional que penaliza os delitos contra a humanidade. E estou falando de apenas vinte anos atrás, não de cinqüenta. Como vêem, ainda falta percorrer um longo caminho.
Quando falo de minha vida, não posso separá-la da história coletiva, pois a história coletiva é a história pessoal. Tive de ver um irmão ser levado, torturado e queimado vivo. Tive de ver meu pai queimado vivo. Minha mãe seqüestrada, torturada, assassinada e comida por animais. Além de outro irmão fuzilado. E eu pensei que seria só isso...
Deram-me o Prêmio Nobel. O problema é que ninguém falou dos motivos desse prêmio nem o que se podia fazer dele. Iniciou-se então o trabalho de torná-lo o mais nobre possível e guiá-lo ao máximo a favor dos ideais que tenho e que devem ter todos os demais. Mas o pior é que, a partir disso, recebi 23 títulos de doutora honoris causa, diplomas que simplesmente estão aí. Reconheço o valor disso todos os dias. Sempre os admiro. Às vezes, os coloco expostos e os contemplo, mas não os posso empenhar. Ou seja, não podem ser levados a um banco para pedir empréstimo, e nem podem ser rifados, pois quem gostaria de ficar com um diploma meu? Talvez para uma coleção de arte. Mas não me é possível fazer um hospital, uma escola, nada. Nem sequer posso pagar minha passagem ao Fórum Social Mundial, onde queria ensinar algo para poder vir todos os anos.

Um comentário:

  1. Guguinha,
    Estou muito orgulhosa de você. Sua sensibilidade de artista é inegável. Selecionar o texto, lindamente trágico de Rovai,mencionando a vida de Rigoberta não é para qualquer um. Mundo afora, em todos os continentes, existem ainda milhares iguais a ela. Obrigada por sua homenagem.
    ELISABETH BARROS

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